Cânceres cervicais invasivos são geralmente precedidos por uma longa fase de doença pré-invasiva. Isto é caracterizado microscopicamente como um espectro de eventos que progride da atipia celular para vários graus de displasia ou neoplasia intra-epitelial cervical (NIC) antes da progressão para o carcinoma invasivo. Um bom conhecimento da etiologia, fisiopatologia e história natural da NIC fornece uma forte base tanto para testes visuais como para o diagnóstico colposcópico e compreensão dos princípios de tratamento destas lesões. Este capítulo descreve a evolução dos sistemas de classificação dos precursores do cancro escamoso do colo do útero, as bases citológicas e histológicas do seu diagnóstico, bem como a sua história natural em termos de regressão, persistência e taxas de progressão. Também descreve as lesões pré-cancerosas que surgem no epitélio colunar cervical, comumente chamadas de lesões glandulares.
O conceito de precursores do câncer cervical data do final do século XIX, quando áreas de alterações epiteliais atípicas não invasivas foram reconhecidas em amostras de tecidos adjacentes a cancros invasivos ( William, 1888). O termo carcinoma in situ (CIS) foi introduzido em 1932 para designar aquelas lesões nas quais as células carcinomatosas indiferenciadas envolviam toda a espessura do epitélio, sem ruptura da membrana do porão ( Broders, 1932). A associação entre o CIS e o câncer cervical invasivo foi posteriormente relatada. O termo displasia foi introduzido no final da década de 1950 para designar a atipia epitelial cervical que é intermediária entre o epitélio normal e o CIS ( Reagan et al., 19.3). A displasia foi ainda categorizada em três grupos – leve, moderada e grave – dependendo do grau de envolvimento da espessura epitelial pelas células atípicas. Posteriormente, por muitos anos, lesões pré-cancerosas cervicais foram relatadas utilizando as categorias de displasia e CIS, e ainda são amplamente utilizadas em muitos países em desenvolvimento.
Um sistema de classificação com classes separadas para displasia e CIS foi cada vez mais percebido como uma configuração arbitrária, baseada nos achados de uma série de estudos de acompanhamento envolvendo mulheres com tais lesões. Observou-se que alguns casos de displasia regrediram, alguns persistiram e outros progrediram para o CIS. Uma correlação direta com a progressão e grau histológico foi observada. Estas observações levaram ao conceito de um processo único e contínuo da doença, pelo qual o epitélio normal evolui para lesões precursoras epiteliais e para o câncer invasivo. Com base nas observações acima, o termo neoplasia intraepitelial cervical (NIC) foi introduzido em 1968 para denotar toda a gama de atipias celulares confinadas ao epitélio. A NIC foi dividida em graus 1, 2 e 3 ( Richart 1968). O NIC 1 correspondeu à displasia leve, o NIC 2 à displasia moderada e o NIC 3 correspondeu à displasia grave e ao SIC.
Nos anos 80, as alterações patológicas como a atipia coilocítica ou condilomatosa associada à infecção pelo papilomavírus humano (HPV) foram cada vez mais reconhecidas. Os coilócitos são células atípicas com cavitação perinuclear ou halo no citoplasma, indicando as alterações citopáticas devidas à infecção pelo HPV. Isto levou ao desenvolvimento de um sistema histológico simplificado de dois graus. Assim, em 1990, foi proposta uma terminologia histopatológica baseada em dois graus de doença: NIC de baixo grau compreendendo as anormalidades consistentes com atipias coilocíticas e lesões NIC 1 e NIC de alto grau compreendendo NIC 2 e 3. As lesões de alto grau foram consideradas como verdadeiros precursores de câncer invasivo ( Richart 1990).
Em 1988, o Instituto Nacional do Câncer dos EUA convocou um workshop para propor um novo esquema para relatar os resultados da citologia cervical (relatório do workshop NCI, 1989; Solomon, 1989; Kurman et al., 1991). As recomendações deste workshop e a revisão subsequente num segundo workshop realizado em 1991 ficaram conhecidas como o sistema Bethesda (TBS) (relatório do workshop do NCI, 1992). A principal característica do TBS foi a criação do termo lesão intra-epitelial escamosa (SIL), e um esquema de dois graus que consiste em lesões de baixo grau (LSIL) e de alto grau (HSIL). A classificação da TBS combina alterações condilomatosas planas (HPV) e CIN de baixo grau (CIN 1) em LSIL, enquanto que o HSIL abrange CIN mais avançado, como o CIN 2 e 3. O termo lesão foi usado para enfatizar que qualquer alteração morfológica sobre a qual o diagnóstico se baseia não identifica necessariamente um processo neoplásico. Apesar de ter sido projetada para o relato citológico, a STE também é usada para relatar achados histopatológicos. A STE é utilizada predominantemente na América do Norte. A correlação entre a terminologia de displasia/carcinoma in situ e os vários graus de NIC, assim como a STE, são apresentados na Tabela 2.1. Utilizamos a terminologia NIC para discutir os vários graus de lesões pré-cancerosas escamosas cervicais neste manual.
TBS foi reavaliada e revisada em um workshop de 2001 convocado pelo National Cancer Institute, EUA, co-patrocinado por 44 sociedades profissionais representando mais de 20 países (Solomon et al., 2002). As categorias de relatórios no âmbito do Sistema Bethesda 2001 estão resumidas na Tabela 2.2.